O MASSACRE DO CENTRO
CÍVICO
Gerson Vieira (*)
Cicatrizes
na Democracia: O Massacre que Não Podemos Esquecer
Dez anos se passaram, mas as imagens permanecem vívidas
como feridas abertas na memória coletiva do Paraná. Naquela tarde de 29 de
abril de 2015, o Centro Cívico de Curitiba transformou-se em um campo de
batalha onde o Estado, que deveria proteger, voltou-se contra seus próprios
cidadãos. A violência brutal desferida contra professores e servidores públicos
revela muito mais que um episódio isolado de repressão – expõe a fragilidade da
nossa democracia, o desprezo pelo diálogo e a disposição de governantes em
criminalizar movimentos legítimos quando interesses econômicos são
contrariados. O Massacre do Centro Cívico não é apenas um evento a ser
lembrado, mas uma cicatriz que deve permanecer visível para que jamais
normalizemos a violência estatal contra aqueles que educam nossas crianças.
Eu estava lá. Entre os quase 20 mil manifestantes que
ocupavam pacificamente a Praça Nossa Senhora de Salette, vi professores –
majoritariamente mulheres – exercendo seu direito constitucional de protestar
contra o confisco da previdência estadual. Testemunhei quando, sem aviso ou
provocação, a ordem para atacar foi dada. O cenário que se seguiu parecia saído
de um filme de guerra: bombas de efeito moral explodindo em meio à multidão,
tiros de borracha disparados indiscriminadamente, helicópteros lançando gás
lacrimogêneo de cima. A fumaça cinzenta encobriu o céu enquanto pessoas corriam
desesperadas, algumas sangrando, outras sufocando.
A brutalidade daquele dia não foi acidental. Foi uma
demonstração calculada de força ordenada pelo então governador Beto Richa e
executada com precisão militar. O Estado, em sua forma mais crua e autoritária,
mostrou que ainda carrega em seu DNA o instinto de silenciar pela força aqueles
que ousam questionar. Mais de 400 feridos não foram suficientes para provocar
um verdadeiro debate nacional sobre os limites da ação policial em
manifestações democráticas. Pelo contrário, vimos tentativas de justificar o injustificável,
de normalizar o absurdo.
O que torna esse episódio particularmente perturbador é que
as vítimas eram educadores – aqueles que ensinam nossos filhos a pensar
criticamente, a questionar e a exercer cidadania. São justamente esses
profissionais que, quando se manifestam por melhores condições de trabalho ou
contra o desmonte de seus direitos previdenciários, enfrentam cassetetes e
bombas. A mensagem enviada naquele dia foi clara: questione e sofrerá as
consequências.
A memória desse massacre não pode ser apagada ou relegada
às notas de rodapé da história paranaense. Ela precisa ser constantemente
revisitada como alerta contra a fragilidade das nossas instituições
democráticas. Quando um Estado democrático de direito mobiliza seu aparato
repressivo contra cidadãos desarmados que exercem direitos constitucionais,
corremos o risco de normalizar práticas autoritárias que remontam aos nossos
períodos mais sombrios.
As imagens daquele dia – professoras ensanguentadas sendo
carregadas por colegas, servidores sufocando com gás lacrimogêneo, policiais
avançando contra manifestantes que recuavam de mãos ao alto – devem permanecer
vivas em nossa consciência coletiva. Não por masoquismo histórico, mas como
antídoto contra o esquecimento que permite que tais atrocidades se repitam.
Dez anos depois, é preciso perguntar: o que mudou? As
investigações sobre os responsáveis avançaram minimamente. Poucos foram
responsabilizados. As vítimas continuam esperando por justiça enquanto assistem
à gradual tentativa de apagamento daquele episódio da memória pública. Enquanto
isso, novas gerações de professores continuam enfrentando o sucateamento da
educação, salários defasados e a constante ameaça de perda de direitos.
O verdadeiro legado do Massacre do Centro Cívico deve ser
nossa recusa coletiva em aceitar que o Estado use violência contra
manifestantes pacíficos. Deve ser nosso compromisso em fortalecer mecanismos de
controle da atividade policial e de responsabilização de agentes públicos que
excedem seus poderes. Acima de tudo, deve ser nossa determinação em defender o
direito ao protesto como pilar fundamental da democracia.
Jamais esquecerei aquelas cenas – o som das
bombas, os gritos de desespero, o cheiro sufocante do gás, o vermelho do sangue
contrastando com o branco dos jalecos dos professores. Quando uma democracia
permite que educadores sejam tratados como inimigos, algo está profundamente
errado. Por isso, não podemos permitir que o Massacre do Centro Cívico seja
apenas um capítulo triste da história, mas um permanente chamado à vigilância
democrática e à solidariedade com aqueles que, ao erguerem suas vozes,
enfrentam a violência do Estado.
(*)
Gerson
Vieira,
escritor, graduando em Letras/Espanhol pela Universidade Estadual de Ponta
Grossa. Ex-diretor do Sindicato dos Bancários de Curitiba e Região, integra o Coletivo Estadual de Cultura do PT no Paraná. Em 28/04/2025.